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MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy Law and Economics
e-ISSN 2594-9187
Luís Antonio da Silva Junior
Mises Academy, São Paulo, Brasil
Graduação em Direito pelo Centro Universitário FACVEST (2008), com especialização Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera-Uniderp (2011) e em Direito, Ciência Política e Liberalismo pela Faculdade Evoluir (2024 - parceria com o Instituto Mises Brasil/Mises Academy). Servidor da Justiça Federal há mais de 16 anos. Atualmente é analista judiciário da Justiça Federal de 1º Grau no Rio Grande do Sul. E-mail: sj-luis@hotmail.com
Resumo: Este artigo pretende realizar uma análise da ADPF 828 à luz dos fundamentos do Estado de Direito e do papel do Supremo Tribunal Federal a partir da noção de Constituição limitada concebida pelo constitucionalismo liberal. Na referida ação, o Relator deferiu medida cautelar suspendendo os despejos e demais atos de desocupação forçada de imóveis ocupados antes de 20 de março de 2020, bem como a possibilidade de concessão de despejo liminar sumário em locações residenciais envolvendo pessoas vulneráveis, por entender que caberia à Suprema Corte a proteção da vida e da saúde durante a pandemia. Contudo, entende-se que tal decisão da Corte Constitucional desbordou de seu papel institucional, avançando sobre as funções dos outros Poderes na definição e aplicação de políticas públicas de habitação e de enfrentamento da crise sanitária então existente, além da ingerência no autogoverno dos tribunais inferiores, violando certos pressupostos do Estado de Direito e a própria Constituição de 1988.
Palavras-chave: Estado de Direito, separação dos poderes, ativismo judicial, moderação, autocontenção.
Abstract: This article intends to carry out an analysis of ADPF 828 in light of the foundations of the Rule of Law and the role of the Federal Supreme Court based on the notion of a limited Constitution conceived by liberal constitutionalism. In said action, the Rapporteur granted a precautionary measure suspending evictions and other acts of forced eviction of properties occupied before March 20, 2020, as well as the possibility of granting summary preliminary evictions in residential rentals involving vulnerable people, as it is understood that it would be up to the Supreme Court to protect life and health during the pandemic. However, it is understood that this decision by the Constitutional Court went beyond its institutional role, advancing the functions of other Powers in defining and applying public housing policies and tackling the then-existing health crisis, in addition to interfering in the self-government of the lower courts, violating certain assumptions of the Rule of Law and the Constitution of 1988.
Keywords: Rule of Law, separation of powers, judicial activism, moderation, self-restraint.
Resumen: Este artículo pretende realizar un análisis de la ADPF 828 a la luz de los fundamentos del Estado de Derecho y el papel del Supremo Tribunal Federal a partir de la noción de Constitución limitada concebida por el constitucionalismo liberal. En dicha acción, el Relator otorgó una medida cautelar suspendiendo los desalojos y otros actos de desalojo forzoso de inmuebles ocupados antes del 20 de marzo de 2020, así como la posibilidad de otorgar desalojos preliminares sumarios en alquileres residenciales que involucren a personas vulnerables, por entender que correspondería a la Suprema Corte proteger la vida y la salud durante la pandemia. Sin embargo, se entiende que esta decisión del Tribunal Constitucional fue más allá de su rol institucional, adelantando funciones de otros Poderes en la definición y aplicación de políticas públicas de vivienda y el enfrentamiento de la crisis sanitaria entonces existente, además de interferir en el autogobierno de los tribunales inferiores, violando ciertos supuestos del Estado de Derecho y la propria Constitución de 1988.
Palabras clave: Estado de Derecho, separación de poderes, activismo judicial, moderación, autocontrol.
Para a preservação do Estado de Direito, é preciso que a interpretação jurídica respeite a autonomia e a forma do Direito. Trata-se de uma condição da liberdade em uma sociedade plural, uma sociedade de desacordo.
No entanto, diante da hegemonia conquistada pelas novas teorias antiformalistas do Direito, chega-se a um estágio perigoso, em que estão sendo progressivamente abandonados os pressupostos basilares do Estado de Direito pelo Poder Judiciário no Brasil, sobretudo pelo Supremo Tribunal Federal, com o intuito de meramente garantir direitos e promover a justiça social.
Nesse contexto, para fins de recorte do presente estudo, elegeu-se a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n.º 828 como um exemplo ilustrativo da aplicação dessas teorias, cujas decisões proferidas até o momento serão objeto de análise neste artigo, tendo como ponto de partida a noção de Constituição limitada concebida pelo constitucionalismo liberal (ou moderno).
Importante pontuar, desde logo, que se trata de um trabalho ainda incompleto, porquanto a própria ação ainda não foi julgada definitivamente em seu mérito, tendo sido analisada apenas a medida cautelar. No entanto, dada a relevância do tema, como se pretende demonstrar ao longo do artigo, entendeu-se que seria o momento adequado para analisar as decisões até então proferidas, sem embargo de nova análise após a conclusão do julgamento.
O artigo está estruturado em três capítulos. O primeiro trata dos fundamentos do Estado de Direito a partir da concepção de Montesquieu, passando pelos princípios de limitação do poder político e da função judicial extraídos d’O Federalista e agregando-se o pensamento de F. A. Hayek em relação à garantia da liberdade individual e da ordem espontânea em uma sociedade livre, além de outros autores complementares.
No segundo capítulo, trata-se do papel institucional do Supremo Tribunal Federal no Estado de Direito, estabelecendo um contraponto entre o ativismo judicial visto atualmente e as virtudes passivas da Corte Constitucional, agregando-se a teoria de Alexander M. Bickel.
Finalmente, no terceiro capítulo, realiza-se a análise das decisões proferidas especificamente na ADPF 828 em cotejo com a fundamentação teórica estudada nos capítulos anteriores, a fim de responder aos questionamentos que deram ensejo à realização do presente estudo: o conhecimento e deferimento de medida cautelar incidental na ADPF 828 pelo Supremo Tribunal Federal está de acordo com os fundamentos do Estado de Direito, notadamente com os postulados da separação dos poderes (Montesquieu) e do alcance da jurisdição constitucional? O STF atuou dentro dos limites de sua função institucional ou usurpou de competências legislativas e/ou executivas no caso?
O método de abordagem utilizado será o dedutivo, com técnica de pesquisa bibliográfica e estudo de caso. O universo da amostra do estudo de caso, como dito, será exclusivamente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF n.º 828, com análise dos materiais existentes, especialmente das decisões proferidas no processo, conforme as informações públicas disponíveis na página eletrônica do Supremo Tribunal Federal. O instrumento de coleta de dados do estudo de caso será a pesquisa direta ao site do Supremo Tribunal Federal.
Por fim, a título de esclarecimento prévio, para os fins deste artigo, os vocábulos “Estado” e “governo” serão utilizados, em regra, como sinônimos. Outrossim, reputou-se desnecessária a transcrição integral das decisões judiciais proferidas na ação analisada, as quais são públicas, encontrando-se disponíveis na página eletrônica do STF na internet (portal.stf.jus.br), sendo destacados apenas os pontos necessários e relevantes ao presente estudo.
Como não se desconhece, o Estado de Direito representa a submissão do próprio Estado ao direito nele vigente; é o governo sob a égide do direito, também chamado governo da lei.
De acordo com F. A. Hayek, em Direito, Legislação e Liberdade, o Estado de Direito é destinado a garantir a proteção da liberdade individual e o desenvolvimento da ordem espontânea em uma sociedade livre, o que é incompatível com a “justiça distributiva pretendida pelo socialismo” (Hayek, 1985, vol. II, p. 107)(nome, ano, vol. II, p. 107) – e pelos demais reformadores sociais da atualidade, pode-se acrescentar, que nada mais são do que socialistas com outra roupagem. Assim, a coerção exercida pelo Estado “só é legítima se utilizada para fazer cumprir normas universais de conduta justa igualmente aplicáveis a todos os cidadãos” (p. 64)(p. 64), devendo o poder coercitivo estatal “limitar-se à execução de normas uniformes de conduta justa, aplicáveis igualmente a todos. As normas de conduta justa, que não dependem de fins, não podem determinar o que uma pessoa deve fazer (afora o cumprimento de obrigações voluntariamente contraídas), mas apenas o que não deve fazer.” Trata-se dos “princípios que determinam o domínio protegido de cada um, que ninguém deve invadir” (p. 147)(p. 147) – nem mesmo o Estado.
Ainda segundo o autor austríaco, em Os Fundamentos da Liberdade:
Seria humanamente impossível separar efetivamente a criação de normas gerais e sua aplicação a casos determinados, a menos que essas funções fossem executadas por pessoas ou órgãos diferentes. Portanto, pelo menos essa parte da doutrina da separação dos poderes precisa ser vista como parte integrante do Estado de Direito. As normas não devem ser elaboradas tendo em vista casos particulares, nem devem os casos particulares ser decididos à luz de algo que não seja a norma geral – ainda que esssa norma possa não ter sido formulada e, portanto, tenha de ser descoberta. Isso exige juízes independentes que não estejam preocupados com os fins temporários do governo. A questão principal é que as duas funções devem ser executadas separadamente por dois órgãos coordenados antes que se possa determinar se a coerção deve ser usada em casos determinados (Hayek, 1983, pp. 256-257 (nome, ano, pp. 256-257); grifou-se).
Para Hayek, a obra de Locke representa “a codificação da doutrina política vitoriosa [na Revolução Gloriosa de 1688], dos princípios práticos que (...) a partir de então deveriam controlar os poderes do governo”. Segundo aquele autor, “embora em sua investigação filosófica Locke se preocupe fundamentalmente com a fonte que legitima o poder e com os objetivos do governo em geral, o problema prático no qual ele se concentra é como impedir que o poder, independentemente de quem o exerce, se torne arbitrário” (Hayek, 1983, pp. 196-197)(nome, ano, pp. 196-197), conforme ilustra a seguinte passagem da obra do autor inglês, citada pelo próprio Hayek:
A liberdade dos governados consiste em pautar a própria existência em uma norma permanente, comum a cada membro daquela sociedade, proclamada como tal pelo Poder Legislativo; liberdade de seguir minha própria vontade em todas as situações não prescritas pela norma e de não se estar sujeito à vontade inconstante, incerta e arbitrária de outro homem. (Locke, 1946, p. 13(nome, ano, p. 13), como citado em Hayek, 1983, p. 197(nome, ano, p. 197).
Trata-se de um conceito de liberdade negativo, representando a esfera na qual o indivíduo não pode ser coagido ou molestado pelo Estado ou pelos outros indivíduos. Segundo Hayek (1983, p. 197)nome, (ano, p. 197), “a principal salvaguarda prática proposta por Locke contra o abuso de autoridade é a separação de poderes, que ele expõe talvez menos claramente e em uma forma menos chã do que a utilizada por seus predecessores. (...) No entanto, seu objetivo último é aquilo que atualmente definimos como ‘restrição do poder’”.
Importante pontuar que governo sob a égide do direito não se confunde com mera legalidade, porquanto o Direito, “no sentido de normas de conduta aplicadas”, é mais antigo que a própria legislação, sendo “tão antigo quanto a sociedade; só a observância de normas comuns torna possível a existência pacífica de indivíduos em sociedade”, como ensina o autor austríaco (Hayek, 1985, vol. I, p. 82)(nome, ano, vol. I, p. 82). No mesmo sentido, Montesquieu (1996)nome (ano) observa que “os seres particulares inteligentes podem ter leis que eles próprios elaboraram; mas possuem também leis que não elaboraram. (...) Antes da existência de leis elaboradas, havia relações de justiça possíveis.” (p. 12)(p. 12).
Para a preservação do Estado de Direito, também é preciso que a interpretação jurídica respeite a autonomia e a forma do Direito. Trata-se de uma condição da liberdade em uma sociedade plural, uma sociedade de desacordo (Waldron, 1999)(nome, ano). Nesse sentido, liberdade e direito são inseparáveis. Para (Hayek, 1985, vol. I, p. 62) (nome, ano, vol. I, p. 62), a condição de liberdade é “um estado no qual cada um pode usar seu conhecimento com vistas a seus propósitos”, os quais só podem ser restringidos ou limitados por normas gerais e abstratas aplicáveis igualmente a todos.
No entanto, como bem observa Adam Fergusson, citado por Hayek (1985, vol. I, p. 54, nota 14) nome (ano, vol. I, p. 54, nota 14), “a liberdade não é, como a origem da palavra poderia sugerir, uma isenção de toda restrição; é, ao contrário, a mais eficaz aplicação de toda restrição justa a todos os membros de um estado livre, sejam eles magistrados ou súditos”. E continua aquele autor:
Somente sob justas restrições pode cada indivíduo viver em segurança, ficando sua liberdade pessoal, sua propriedade ou ação inofensiva livres de interferência. (...) O estabelecimento de um governo justo e eficaz é, entre todos os atributos de uma sociedade civil, o mais essencial à liberdade: que cada um seja justamente considerado livre na mesma medida em que o governo sob o qual vive é suficientemente poderoso para protegê-lo, sendo ao mesmo tempo suficientemente refreado e limitado para que não haja abuso desse poder (Ferguson, 1972, vol. 2, p. 258 (nome, ano, p. 258, como citado em Hayek, 1985, vol. I, p. 54, nota 14) nome, ano, vol. I, p. 54, nota 14).
Na mesma linha, Montesquieu já advertia que “a liberdade política não consiste em se fazer o que se quer. Em um Estado, isto é, numa sociedade onde existem leis, a liberdade só pode consistir em poder fazer o que se deve querer e em não ser forçado a fazer o que não se tem o direito de querer”, concluindo que “a liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; e se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem ele já não teria liberdade, porque os outros também teriam este poder” (Montesquieu, 1996, p. 166)(nome, ano, p. 166).
Segundo o autor francês, “a liberdade política só se encontra nos governos moderados” e, ainda assim, somente “quando não se abusa do poder” (Montesquieu, 1996, p. 166)(nome, ano, p. 166). O governo precisa de limites porque o ser humano tende a abusar do poder quando o possui e somente o poder pode limitar o poder. Daí a solução do desenho institucional da repartição do poder político na comunidade entre legislativo, executivo e judiciário, na clássica teoria da separação dos poderes, assim sistematizada n’o Espírito das Leis a partir da experiência da constituição da Inglaterra:
Existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil.
Com o primeiro, o príncipe ou o magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particulares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder executivo do Estado (Montesquieu, 1996, pp. 167-168)(nome, ano, pp. 167-168).
O risco de abuso e do arbítrio contra a liberdade individual do cidadão quando os poderes de julgar, legislar e executar estão “reunidos” na mesma pessoa ou no mesmo grupo político já fora observado pelo referido autor francês há quase trezentos anos:
A liberdade política, em um cidadão, é esta tranqüilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem sobre a sua segurança; e para que se tenha esta liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão.
Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente.
Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.
Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares (Montesquieu, 1996, p. 168(nome, ano, p. 168); grifou-se).
Sobre a inspiração da ideia da separação dos poderes, Hayek, citando Gwyn, assim esclarece:
Gwyn mostra que a idéia da separação dos poderes foi inspirada por três considerações inteiramente diversas, classificadas por ele em argumentos do estado de direito, da responsabilidade e da eficiência. O argumento do estado de direito exigiria que o legislativo só aprovasse normas de conduta justa aplicáveis igualmente a todas as pessoas e ao governo. O argumento da responsabilidade pretende que o número de homens que necessariamente dirige de fato o governo seja obrigado a prestar contas à assembleia representativa, enquanto o argumento da eficiência exige a delegação do poder de ação ao governo por não ser uma assembléia capaz de conduzir tarefas eficientemente. É óbvio que no segundo e no terceiro casos a assembléia também tomaria parte do governo, mas somente numa função de supervisão e controle (Gwyn, 1965 (nome, ano, como citado em Hayek, 1985, vol. I, p. 149, nota 8)nome, ano, vol. I, p. 149, nota 8).
Ainda sobre o mesmo ponto, Hayek (1985)nome (ano) observa a existência de uma confusão decorrente da ambiguidade da palavra ‘lei’ que se manifesta “desde as primeiras discussões acerca do princípio da separação dos poderes”, ao se afirmar que o executivo ‘executa’ as leis aprovadas pelo legislativo. Segundo ele, as “normas de conduta justa obviamente não são ‘executadas’ pelo poder executivo, sendo antes aplicadas pelos tribunais a litígios específicos à medida que estes se lhes apresentam; o que o executivo deverá executar são as decisões do tribunal”. Somente nos atos legislativos que “formulam instruções para o governo” – não estabelecendo normas universais de conduta –, que ele denomina como “legislação” (legislation), “deverá o ‘executivo’ cumprir o que foi decidido pelo legislativo” (Hayek, 1985, Vol. I, pp. 148-149) (nome, ano, vol. I, pp. 148-149).
Para manter na prática a necessária divisão do poder entre legislativo, executivo e judiciário, recorre-se ao sistema de freios e contrapesos (checks and balances), através do qual os poderes mutuamente se controlam e limitam a esfera de atuação uns dos outros, cujos instrumentos efetivamente utilizados para tal fim vêm previstos na constituição. Nesse sentido, Hamilton, Madison e Jay, no artigo Número LI de O Federalista, observam que “deve-se sanar a falha [observada na divisão do poder na Confederação então existente nos EUA] arquitetando de tal modo a estrutura interna do governo que suas várias partes constituintes possam ser, por suas relações mútuas, instrumentos para a manutenção umas das outras em seus devidos lugares” (Hamilton, Madison & Jay, 1993, p. 349)(Hamilton, Madison & Jay, ano, p. 349).
Em geral, o legislativo aprova a instituição dos tributos e fiscaliza a execução orçamentária do executivo; o chefe do executivo tem o poder de veto aos projetos de lei aprovados pelo legislativo e repassa ao judiciário os recursos orçamentários que lhe são cabíveis após aprovação do legislativo; e o judiciário pode anular os atos dos demais poderes em casos de inconstitucionalidade ou de ilegalidade. O caso específico do Brasil, no que interesse ao presente estudo, será analisado no próximo tópico.
Na concepção de Montesquieu, o poder de julgar, “tão terrível entre os homens”, torna-se “invisível e nulo”, não se tendo “continuamente juízes sob os olhos”, temendo-se “a magistratura, e não os magistrados” (Montesquieu, 1996, p. 169)(nome, ano, p. 169). A afirmação de que o poder de julgar é “nulo” trata-se, sem dúvida, da virtude da discrição que deve caracterizar a atuação do juiz, não se tratando de um menosprezo a sua função, que o próprio Montesquieu reconhece ser “terrível”, certamente não só pela sua dificuldade, como pela gravidade de suas consequências.
Na mesma linha, de acordo com
Todo aquele que considerar atentamente os diferentes poderes perceberá que, num governo em que eles estão separados, o judiciário, pela natureza de suas funções, será sempre o menos perigoso para os direitos políticos da Constituição, por ser o menos capaz de transgredi-los ou violá-los. O executivo não só dispensa as honras como segura a espada da comunidade. O legislativo não só controla a bolsa como prescreve as regras pelas quais os deveres e direitos de todos os cidadãos serão regulados. O judiciário, em contrapartida, não tem nenhuma influência nem sobre a espada nem sobre a bolsa; nenhum controle nem sobre a força nem sobre a riqueza da sociedade, e não pode tomar nenhuma resolução ativa. Pode-se dizer que não tem, estritamente, força nem vontade, mas tão-somente julgamento, estando em última instância na dependência do auxílio do braço executivo até para a eficácia de seus julgamentos.
Este simples quadro da matéria sugere várias consequências importantes. Prova incontestavelmente que o judiciário é incomparavelmente mais fraco que os dois outros poderes; que jamais pode atacar com sucesso qualquer dos dois; e que todo cuidado possível é necessário para capacitá-lo a se defender contra os ataques dos outros. Prova igualmente que, embora a opressão individual possa esporadicamente provir dos tribunais de justiça, a liberdade geral do povo jamais poderá ser ameaçada a partir dessa frente; isto, desde que o judiciário permaneça verdadeiramente distinto tanto do legislativo como do executivo, pois concordo que “não há liberdade se o poder de julgar não for separado dos poderes legislativo e executivo” . E prova, finalmente, que a liberdade nada tem a temer do judiciário isoladamente, mas tem tudo a temer de sua união com qualquer outro dos poderes; que todos os efeitos de tal união decorreriam forçosamente de uma dependência do judiciário para com um dos últimos, a despeito de uma separação nominal e aparente; que, em razão da sua debilidade natural, o judiciário está continuamente exposto a ser dominado, acuado ou influenciado pelos poderes coordenados; e que, como nada pode contribuir tanto para sua firmeza e independência como a vitaliciedade dos juízes em seus cargos, essa qualidade deve ser justamente considerada um ingrediente indispensável na sua constituição e, em grande medida, a cidadela da justiça e da segurança públicas. (Hamilton, Madison & Jay, 1933, pp. 479-480(Hamilton, Madison & Jay, ano, pp. 479-480; grifou-se).
Dessa forma, o Poder Judiciário não pode ter agenda, sob pena de imiscuir-se nas discussões políticas que pertencem à esfera de atuação dos outros poderes e afastar-se da necessária imparcialidade e moderação que devem nortear sua atuação, enveredando para o arbítrio e a opressão judiciais, que pode tornar-se a mais grave de todas, porque da ditadura do judiciário não há a quem recorrer. Para isso, bastaria a existência, por hipótese, de um juiz voluntarioso o suficiente para intimidar as demais autoridades da República, inclusive seus próprios colegas, sem que seja contido ou sequer admoestado publicamente por estes últimos. Se ele contar com o necessário apoio ao menos de parte do aparato coercitivo/policial do Estado, poderá fazer o que quiser.
Os fundamentos do Estado de Direito, portanto, consistem na limitação do poder governamental, estabelecendo salvaguardas institucionais para a garantia e proteção da liberdade individual, cujo mecanismo mais eficaz concebido pelo constitucionalismo liberal foi a separação dos poderes entre legislativo, executivo e judiciário, com um poder limitando o outro através do sistema de freios e contrapesos previsto na respectiva constituição, sendo o judiciário, ao menos em tese, o mais fraco dos três.
A partir da análise realizada no tópico anterior, tem-se que a função do juiz no Estado de Direito não é efetivar direitos fundamentais, nem mesmo efetivar a Constituição. É, isto sim, aplicar imparcialmente a lei (em sentido amplo) ao caso concreto.
Segundo Hayek, “um juiz não pode levar em conta as necessidades de pessoas ou grupos específicos, ou ‘razões de estado’, ou ‘a vontade do governo’, ou quaisquer objetivos específicos a que uma ordem de ações possa servir”, devendo “agir com base em princípios de conduta individual justa”, e não “norteado pela chamada ‘justiça social’, expressão que designa precisamente essa tentativa de alcançar resultados específicos para pessoas ou grupos particulares, o que é impossível numa ordem espontânea” (Hayek, 1985, vol. I, pp. 139-140)(nome, ano, vol. I, pp. 139-140).
Como já advertia Montesquieu, “precisa-se de tribunais de judicatura com sangue-frio, para os quais todas as causas sejam de certa forma indiferentes” (Montesquieu, 1996, p. 91)(nome, ano, p. 91), não devendo os juízes tomarem os assuntos movidos pela paixão. Por isso os tribunais precisam ser compostos por muitas pessoas, não sendo desejável o “magistrado único”, o qual “só pode aparecer no governo despótico” (Montesquieu, 1996, p. 91)(nome, ano, p. 91). Chama atenção, neste aspecto, a proliferação de decisões monocráticas por integrantes da Corte Constitucional brasileira.
Aliás, a interferência direta dessas decisões singulares no funcionamento da política já levou à reação do Legislativo, estando em tramitação no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição – PEC n.º 8/2021, que visa, na prática, limitar as decisões monocráticas do Supremo Tribunal Federal e dos outros tribunais superiores, notadamente para evitar que as decisões que suspendam a eficácia de leis e atos normativos com efeitos erga omnes; que suspendam atos dos presidentes dos demais poderes; que suspendam a tramitação de proposições legislativas; que afetem políticas públicas ou que criem despesas para os demais poderes sejam tomadas por um único magistrado, nos termos da explicação da Ementa da referida Proposta. A matéria foi aprovada pelo Senado Federal em 22/11/2023, conforme notícia divulgada pela Agência Senado, sendo remetida à Câmara dos Deputados em 06/12/2023.
É certo que, para o bom desempenho de suas funções, os tribunais precisam ser independentes, sobretudo no controle de constitucionalidade das normas inferiores à Constituição ( judicial review ). De acordo com O Federalista, “a completa independência dos tribunais de justiça é peculiarmente essencial numa Constituição limitada”, cujo ingrediente indispensável para a firmesa e independência do judiciário é “a vitaliciedade dos juízes em seus cargos” (Hamilton, Madison & Jay, 1993, p. 480)(Hamilton, Madison & Jay, ano, p. 480), conforme citação já transcrita no capítulo anterior. Melhor desenvolvendo o argumento, extrai-se da mesma obra:
Nesse caso, se os tribunais de justiça devem ser considerados os bastiões de uma Constituição limitada contra abusos legislativos, esta consideração ofereceria um forte argumento para o caráter vitalício dos cargos judiciais, uma vez que nada contribuirá tanto quanto isto para a conservação pelos juízes desse espírito independente que será essencial para o desempenho consciencioso de tão árdua missão.
Essa independência dos juízes é igualmente necessária para proteger a Constituição e os direitos dos indivíduos dos efeitos daquela irritação que as artes de designar homens, ou a influência de conjunturas particulares, disseminam entre o próprio povo, e que, embora logo cedam lugar a uma melhor informação e a uma reflexão mais ponderada, tendem, nesse meio-tempo, a gerar perigosas inovações no governo e graves opressões da minoria da comunidade. (...)
Essa adesão inflexível e uniforme aos direitos da Constituição e dos indivíduos, que percebemos ser indispensável nos tribunais de justiça, não pode ser esperada de juízes que detém seus cargos por um mandato temporário. Designações periódicas, não importa como sejam reguladas ou quem as faça, seriam fatais, de uma maneira ou de outra, à sua necessária independência (pp. 482-484)(pp. 482-484).
Por outro lado, segundo os mesmos autores, não podem os tribunais, “a pretexto de uma incompatibilidade, substituir as intenções constitucionais do legislativo por seus próprios desejos”. Para eles, “os tribunais devem especificar o sentido da lei; e, caso se dispusessem a exercer a vontade em vez do julgamento, isso levaria igualmente à substituição do desejo do corpo legislativo pelo seu próprio” (Hamilton, Madison & Jay, 1993, p. 482)(Hamilton, Madison & Jay, ano, p. 482).
Nesse contexto, a jurisdição constitucional tem o papel de garantir o exercício adequado do poder político, principalmente da atividade parlamentar. Não cabe à Corte Constitucional, contudo, ser protagonista. Segundo a concepção Liberal, sua atuação deve ser discreta, nula, invisível, para que os outros poderes floresçam na discussão e solução das questões substantivas. Cumpre aos tribunais constitucionais simplesmente extirpar do mundo jurídico aquelas normas que forem editadas em contrariedade à Constituição.
Conforme O Federalista (Hamilton, Madison & Jay, 1993, p. 480)(Hamilton, Madison & Jay, ano, p. 480), a missão dos tribunais de justiça “deverá ser declarar nulos todos os atos contrários ao sentido manifesto da Constituição”. Isso permite concluir que não é qualquer contrariedade periférica ao texto constitucional ou mesmo à visão de mundo do julgador que deve levar à atuação da jurisdição constitucional, justificando-se a intervenção da corte constitucional nas decisões do legislador apenas em caso de contrariedade ao sentido manifesto da Constituição, já que a presunção é de constitucionalidade da lei.
Pode-se dizer que a corte exerce um papel de legislador negativo – e não positivo – ao retirar do ordenamento jurídico as normas incompatíveis com a Constituição. Todavia, mesmo esse poder de legislador negativo não pode ser banalizado, pois o exercício desmesurado de seu poder de revisão (judicial review) acaba por incentivar a transferência da discussão das questões políticas para a esfera judicial pelos segmentos políticos derrotados nas deliberações parlamentares e/ou na implantação de políticas públicas, levando, ao fim e ao cabo, ao descrédito de sua atuação como agente imparcial; o que, aliás, já vem ocorrendo no Brasil.
Desse modo, os magistrados, inclusive e sobretudo os integrantes da Suprema Corte, devem cultivar certas virtudes passivas como condição da interpretação jurídica, sob pena de desbordarem para o arbítrio judicial. Trata-se das virtudes que consubstanciam a ética judicial no exercício da razão prática (na ação de decidir), entre as quais se destacam a prudência, a moderação e a autocontenção.
Sobre o ponto, destaca-se a obra de Alexander M. Bickel (
The Least Dangerous Branch ), em que há um capítulo especificamente destinado ao estudo das
Virtudes Passivas (Chapter 4 - The Passive Virtues). Segundo
Conrado Hübner Mendes, a obra de Bickel foi concebida “no calor das
agitações da década de 60”, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos
teria assumido “papel de protagonista na condução das transformações
sociais, relacionadas sobretudo a casos de segregação racial”. De
acordo com a tese de Mendes, “intrigava a Bickel encontrar uma
justificativa para o ativismo que a corte vinha exercendo dentro da
democracia”
Todavia, as transformações sociais devem advir da evolução da própria sociedade, através de uma ordem espontânea, como defendido por Hayek ao longo de toda sua obra, e não de canetaços de magistrados, por mais supremos e iluminados que se considerem. Não há como um juiz, mesmo do Supremo, determinar como uma Grande Sociedade deve orientar-se.
Todavia, essa ideologia não é nova. Nas últimas décadas do Século XX e
início do Século XXI, ganhou relevância a ponto de tornar-se o
pensamento dominante da comunidade jurídica mainstream a
doutrina do “novo direito constitucional”, mais conhecida como
neoconstitucionalismo, a qual preconiza a força normativa da
Constituição, entendendo que um dos papeis do Poder Judiciário no
mundo contemporâneo seria a efetivação dos
direitos constitucionais, inclusive atuando de forma proativa
na implementação de políticas públicas. A doutrina do
neoconstitucionalismo pretende criar “uma nova percepção da
Constituição e de seu papel na interpretação jurídica em geral”
Essa concepção de que seria função do juiz garantir direitos extraídos diretamente do texto constitucional, independentemente da atuação dos demais Poderes constituídos em suas respectivas esferas de competência, é conhecida como ativismo judicial, e tem levado a uma contínua e exacerbada judicialização da política, que, mais do que tolerada, parece estar sendo mesmo incentivada pelos tribunais, notadamente pelo Supremo Tribunal Federal.
Segundo Gonçalves e Pasquini (2020)Gonçalves e Pasquini (ano), “a expressão ativismo judicial surgiu em 1947, num artigo de Schlesinger Jr. (1947) Schlesinger Jr. (ano), sob o título ‘The Supreme Court: 1947’, publicado na revista Fortune”, quando “era discutido o perfil dos juízes que à epoca integravam a Suprema Corte” dos Estados Unidos, “classificando-os como ‘ativistas’, ‘campeões da autocontenção’ e ‘moderados’”.
Embora não sejam conceitos sinônimos, a doutrina do neoconstitucionalismo conduz necessariamente ao ativismo judicial, pois, ao pretender a efetivação de direitos extraídos diretamente do texto constitucional, o qual, por razões óbvias, não diz nem tem como dizer quem deve efetivá-los e qual será a origem dos recursos para pagar os inevitáveis custos dessa efetivação, o judiciário acaba suplantando a atuação do legislador e do executivo sem ter legitimidade constitucional ou democrática para tanto, atuando ativamente fora de sua esfera de poder institucional.
Conquanto Barroso sustente que “a interpretação e aplicação do ordenamento jurídico hão de ser inspiradas por uma teoria de justiça, mas não podem comportar voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais” (Barroso, 2006, p. 4)(nome, ano, p. 4), não é o que acaba ocorrendo na prática, havendo notórios exemplos de voluntarismos (e até mesmo personalismos) judiciais, inclusive do próprio Supremo Tribunal Federal, como evidenciado por notórios acontecimentos recentes.
Segundo o ministro Barroso, o pós-positivismo (marco filosófico do
novo direito constitucional) “procura empreender uma leitura
moral do Direito”
Sobre essa doutrina da leitura moral do direito promovida pelo neoconstitucionalismo, aliás, bem adverte Barzotto que:
A apressada identificação do direito com a moral promovida pelo neoconstitucionalismo esbarra no pluralismo da sociedade contemporânea. Se pretendemos determinar como direito válido o que é “conforme à dignidade da pessoa humana”, por exemplo, e constatamos a presença de várias concepções contraditórias na sociedade sobre o que este significa esta dignidade, não há como ter um critério socialmente compartilhado para diferenciar direito e não-direito. Em uma sociedade na qual há pluralismo moral, afirmar a identidade entre direito e moral equivale a afirmar que a sociedade carece de direito como padrão comum de convívio e solução de conflitos. Se a validade de cada uma das regras do ordenamento fica sujeita a um controle de constitucionalidade com base em direitos/princípios, e estes são controversos entre a sociedade e entre os julgadores, a sociedade carece de regras firmes e estáveis com que possa ordenar o convívio (2016, p. 179)(ano, p. 179).
Sem a pretensão de aprofundar a matéria, por não se tratar do escopo do presente estudo, pode-se concluir que o neoconstitucionalismo atua basicamente em duas frentes: na efetivação de direitos constitucionais através da atuação proativa na implementação de políticas públicas extraídas diretamente do texto constitucional, o que nada mais é do que o ativismo judicial; e na leitura moral do Direito no controle de constitucionalidade das leis e atos normativos editados, inclusive suspendendo a tramitação de proposições legislativas, o que conduz necessariamente ao arbítrio judicial, por não estar alicerçado em normas gerais de conduta justa ou na ordem espontânea da sociedade, mas na visão de mundo particular dos julgadores, muitas vezes adotando até mesmo a narrativa de grupos organizados de pressão, o que de forma alguma representa a opinião uníssona da sociedade.
De fato, não é função do juiz “fazer justiça” (sobretudo justiça social) para “garantir direitos” em uma sociedade pluralista, porque isso acaba levando justamente a voluntarismos e discricionarismos baseados em seus próprios valores morais. A propósito, já advertia Bastiat (2019, pp. 64-65)nome (ano, pp. 64-65) que “o fim da Lei é impedir a Injustiça de reinar. De fato, não é a Justiça que tem existência própria, mas a Injustiça. Uma resulta da ausência da outra”. Por decorrência lógica, a função do juiz não é “fazer justiça”, mas evitar que a injustiça impere.
No mesmo sentido, McGeorge Bundy citado por Hayek:
Sou de opinião, pois, que o processo legal é melhor compreendido não como uma fonte pura e positiva de justiça, mas como um remédio imperfeito para erros clamorosos. (...) Ou talvez possamos conceber a lei não como algo bom em si mesmo, mas como um instrumento que deriva seu valor menos do que faz que daquilo que impede. (...) O que se pede [dos tribunais] não é que façam justiça, mas que forneçam alguma proteção contra a injustiça grave (Bundy, 1956, p. 365(nome. ano, p. 365, como citado em Hayek, 1985, vol. II, p. 44, nota 9 nome, ano, vol.II, p. 44); grifou-se).
De mais a mais, ao interferir em demasia nas questões políticas, utilizando desmesuradamente a judicial review em matéria constitucional, invadindo a própria esfera de definição e aplicação de políticas públicas, era inevitável que houvesse algum tipo de reação a essa atuação ativista do Supremo Tribunal Federal, o que já começou a acontecer, como referido anteriormente. Para deixar claro, não se está aqui a defender que a Corte seja omissa no desempenho de suas nobres funções constitucionais, notadamente na sua condição de guardiã da Constituição (art. 102 do texto de 1988), contudo, uma atuação mais moderada poderia colaborar até mesmo para a preservação de sua autoridade enquanto detentora da última palavra em questões constitucionais. Por outro lado, reações descabidas e até mesmo desmedidas, como vistas recentemente, certamente não colaboram para a credibilidade do Tribunal nem para a preservação do Estado de Direito.
A propósito, convém trazer à baila a lição do Federalista Hamilton acerca dos benefícios da integridade e moderação do Judiciário:
Os benefícios da integridade e moderação do judiciário já se fizeram sentir em mais de um Estado e, embora possam ter desagradado àqueles que viram assim frustradas suas expectativas funestas, certamente granjearam a estima e o aplauso de todos os virtuosos e desinteressados. Homens ponderados de todas as categorias devem valorizar tudo que tenda a gerar ou fortalecer essa têmpera nos tribunais, pois nenhum homem pode ter certeza de que amanhã não será a vítima de um espírito de injustiça que hoje o beneficia. E todo homem deve compreender, desde já, que a tendência inevitável desse espírito é solapar as bases da confiança pública e privada e introduzir em seu lugar a desconfiança e o infortúnio (Hamilton, Madison & Jay, 1993, p. 483) (Hamilton, Madison & Jay, ano, p. 483).
A defesa de uma maior moderação como contraponto ao ativismo judicial visto atualmente não se trata de nenhuma abordagem utópica ou meramente teórica, tampouco de uma crítica vazia ao trabalho realizado pelo Tribunal, mas da tentativa de chamar a atenção para o possível resgate de uma tradição ocidental acerca do alcance da função jurisdicional no Estado de Direito, que parece estar sendo esquecida e abandonada, trazendo como uma de suas piores consequências a insegurança jurídica.
Nesse contexto, ganha relevância o estudo das virtudes passivas concebidas por Bickel (1986)nome (ano), que podem representar um meio-termo entre o ativismo exacerbado visto atualmente e o outro extremo, que seria a excessiva autocontenção, com uma atuação minimalista que poderia levar à omissão da Corte Constitucional. Embora esta última hipótese seja impensável no momento atual, poderia, em tese, vir a acontecer, levando ao enfraquecimento da independência do judiciário, o que também seria maléfico para o equilíbrio entre os poderes. Como já dizia Montesquieu, “até a virtude precisa de limites” para que não haja abuso do poder (Montesquieu, 1996, p. 166)(nome, ano, p. 166).
Para análise da teoria de Bickel no presente estudo, usa-se como ponto de partida a tese de doutorado de Conrado Hübner Mendes de 2008.
Segundo essa tese, Bickel defende o diálogo institucional ( colóquio socrático ) no controle de constitucionalidade, porque “há mais no controle de constitucionalidade do que interpretação e aplicação do direito”, sendo “inevitável a corte ser influenciada por fatores externos ao direito”, sustentando o autor norte-americano que “é assim que deve ser, a depender de quais forem esses fatores” (Mendes, 2008, p. 101)(nome, ano, p. 101).
De acordo com Bickel, a Corte Constitucional realiza um “juízo político”, mas este “não é associado ao impulso, ao sentimento, à predileção ideológica”, sendo “informado por uma vontade desinteressada e isenta”, consistindo “num juízo qualificado pela virtude da prudência e é, sobretudo, no exercício da prudência, que a corte se comporta como ‘animal político’” (Mendes, 2008, p. 102)(nome, ano, p. 102). Citando diretamente a própria obra de Bickel, em tradução livre:
A regra de que o Tribunal deve legitimar tudo o que não tenha justificação para derrubar não atinge o objetivo pretendido de remover o Tribunal da arena política; pelo contrário, provoca uma mudança incerta e descontrolada no grau de intervenção do Tribunal e muda a direção. Ao alcançar este resultado, extirpa muito daquilo que a instituição é capaz de fazer sem ofender indevidamente a teoria e a prática democráticas. Na raiz está a questão – em geral – do papel dos princípios no governo democrático. Nenhuma tentativa de tirar o Tribunal da tensão Lincolniana pode ser bem sucedida. A regra dos princípios neutros apenas distorce a tensão, colocando o peso do Tribunal na maioria das vezes do lado da conveniência; pois esse peso é sentido sempre que o Tribunal legitima escolhas legislativas com base nos méritos constitucionais. O Tribunal consegue desempenhar plenamente o seu papel, como fez nos Casos de Segregação Escolar, mantendo-se na tensão em que vive a nossa sociedade, porque tem à sua disposição as diversas técnicas e dispositivos da via mediadora entre os últimos da legitimação e da invalidação. Este, como tentarei mostrar, é o significado da própria fórmula da velocidade deliberada.
Segue-se que as técnicas e dispositivos associados para deter a mão do Tribunal, como é declaradamente verdade, pelo menos no caso dos certiorari, não podem ser eles próprios baseados em princípios, no sentido em que temos o direito de esperar que as decisões sobre o mérito sejam baseadas em princípios. Eles marcam o ponto em que o Tribunal dá a cabeça às instituições eleitorais e fica fora da política, e não há nada de paradoxal em concluir que é aqui que o Tribunal é mais um animal político. (...)
Mas isto não significa conceder um critério não canalizado, não dirigido e não mapeado. É não admitir decisão procedente de impulso, palpite, sentimento, predileção, inarticulável e irracional. A antítese de princípio numa instituição que representa a decência e a razão não é o capricho ou mesmo a conveniência, mas a prudência. E assim todas as questões significativas ainda estão diante de nós. Até agora tocamos apenas no tipo de generalização que não pode resolver um único caso concreto, mas sem a ajuda da qual nenhum caso pode ser decidido de forma sensata. Quais são, então, as considerações nas diversas categorias de casos? Proponho tentar um desdobramento ilustrativo de alguns dos dispositivos para decidir não decidir. Começarei com certos elementos de maturidade que deveriam estar e muitas vezes estão refletidos na negação de petições de certiorari pela Corte. A partir daí, descerei para outras camadas – talvez elas possam ser consideradas mais profundas. Nesse exercício, é necessário mergulhar o leitor em detalhes bastante completos de casos reais (Bickel, 1986, pp. 131-133)(nome, ano, pp. 131-133); grifou-se.
Segundo Mendes, “para Bickel, em toda decisão política, inescapavelmente, há duas dimensões: a de princípio e a de conveniência e oportunidade (expediency). Em todo ato de governo, podem-se observar dois aspectos: o seu efeito concreto imediato e a sua relação com os valores duradouros que dão coesão e unidade à comunidade política”, sendo “o gerenciamento da tensão entre ambos (...) a essência da arte de governo, e isso se aplica tanto ao juiz quanto ao legislador, ainda que em doses diferentes”, estando tanto a corte como os outros poderes “imersos nessa tensão, e não se pode tentar eliminá-la ou dissimulá-la” (Mendes, 2008, p. 102)(nome, ano, p. 102). De acordo com Mendes, essa era a filosofia política de Lincoln, daí Bickel denominá-la de “tensão lincolniana” (Mendes, 2008)(nome, ano).
A propósito, também observa Miguel (2012)nome (ano), analisando a obra de Bickel:
Não há, segundo Bickel, sociedade boa sem princípios, mas também não há sociedade viável governada exclusivamente com base em princípios, o que torna inevitável ao legislador e ao juiz a sujeição a tal “tensão lincolniana”. As exigências de princípio, entendidas como valores morais rígidos, estariam sujeitas à necessidade pragmática de acomodação estável à realidade, o que implicaria a necessidade de uma postura flexível na condução de mudanças de forma gradual e estável.
As cortes têm a missão de defender a dimensão de princípio, o que exige costumes institucionais mais fáceis de ser desenvolvidos em um ambiente acostumado a lidar com a linguagem de direitos diante de casos concretos. Deixa-se a questão de princípio amadurecer e ser objeto de processos deliberativos na sociedade, enquanto se exerce um outro tipo de racionalidade, a prudencial, até mesmo porque a autoridade da corte não teria condições de se sustentar diante de uma contrariedade à opinião pública. Um exercício de decisões fortes a todo tempo tende a transformar a corte em um substituto (second guesser) do juízo de conveniência do legislador.
(...)
Bickel (1962, p. 239)nome (ano, p. 239) vê a corte como professora da cidadania (teacher of the citizenry), prevenindo que a sociedade se divida sem deixar de gerar uma pressão, pela via do colóquio gerado, por uma ação legislativa. Assim, o exercício dessa missão educativa deve ser a regra, cabendo à corte deixar o colóquio estabelecer novos valores no contexto dos processos deliberativos. O Judiciário deve decidir somente quando a solução possa ser entendida como decorrência natural desse processo. A função da corte não se restringe ao mero registro de uma opinião. Ela tem, sim, um papel de liderança. Entretanto, esse papel não pode ser confundido com uma autorização para imposições, de forma que seus pronunciamentos sobre princípios devem se restringir àqueles que possam obter aceitação generalizada. O Judiciário é um profeta da opinião que vá prevalecer e durar, e não o responsável por proferir atos hermenêuticos divinatórios pretensamente veiculantes de respostas corretas (pp. 124-125(pp. 124-125); (sem grifo no original).
Em complementação, traz-se o seguinte excerto da análise realizada por Mendes (2008)nome (ano), porquanto bastante esclarecedor acerca do pensamento de Bickel no tocante ao uso adequado das virtudes passivas pela Corte Constitucional:
(...) O agente decisório precisa ser dotado de uma sensibilidade especial para saber balancear as demandas de princípio com a necessidade de acomodação estável à realidade. Não pode apegar-se à ambição de mudança abrupta do princípio. Há de ter flexibilidade para conduzir mudanças graduais e estáveis.
A missão principal da corte, da qual decorre a justificativa de sua autoridade, é defender a dimensão de princípio. Essa é sua capacidade institucional singular, difícil de ser encontrada no parlamento representativo. Para a promoção do princípio, são necessários hábitos mentais e costumes institucionais que a corte tem maior probabilidade de desenvolver. Além disso, ela também tem a vantagem de lidar com casos concretos, que fornecem um teste saudável para as abstrações valorativas. Se o parlamento não está bem equipado para essa tarefa, é natural que à corte caiba a missão de guardar e pronunciar tais princípios. No entanto, Bickel se põe uma pergunta: “como a corte, encarregada da função de enunciar princípios, produz ou permite os necessários compromissos?” Como evitar que seja forçada a impor sobre a sociedade, repentinamente, regras rígidas que vão contra as práticas enraizadas?
A corte, diante de um caso, tem à sua disposição três alternativas. Em primeiro lugar, tem o poder de revogar uma lei por inconstitucionalidade. Em segundo lugar, pode validar e legitimar essa lei, se entendê-la constitucional. Tanto uma quanto outra precisam ser tomadas com base em princípios. São as duas escolhas óbvias que um tribunal pode fazer quando analisa o mérito da disputa constitucional. Há, no entanto, uma terceira opção: a corte pode não fazer nenhuma das duas coisas, e decidir não decidir. Para tanto, lança mão de uma série de “técnicas de não decisão”, as chamadas virtudes passivas. São ferramentas processuais por meio das quais a corte evita emitir uma opinião sobre o caso, pois ela não pode estar obrigada a legitimar tudo aquilo que não considere inconstitucional. Em face de dois extremos, abre uma saída pelo meio, um mecanismo para aplicar a máxima do juiz Brandeis: “a coisa mais importante que fazemos é não fazer”.
A corte precisa ter, por isso, sensibilidade para o exercício dessa tarefa mais sutil de não decidir, de saber se, quando e quanto decidir, perguntas inadmissíveis para concepções rígidas da revisão judicial. Há, segundo o autor, uma diferença de tipo, e não de grau, entre a interpretação do direito e o uso de virtudes passivas, estas mais ligadas à prudência. O princípio é a antítese da prudência, o que não significa que esta não tenha um significado racional. A revisão judicial pode jogar, nas palavras do autor, com o “maravilhoso mistério do tempo” e esperar. Esse tempo de espera é valioso para que processos deliberativos sejam estimulados na sociedade, antes que se tome uma decisão rígida de princípio. Deixa-se a questão de princípio amadurecendo e sendo testada pela experiência.
A corte, ainda segundo Bickel, deve tentar persuadir antes de coagir, encontrar uma acomodação tolerável entre as demandas do princípio e de conveniência. Se seguir o rumo contrário à opinião pública, ao longo do tempo, sua autoridade ruirá. Em algumas circunstâncias, não seria sábio interferir no processo democrático por meio de um julgamento rígido de princípio. A obrigação de decidir todo o tempo levaria a um processo manipulativo da democracia, ou então, provavelmente, ao abandono do princípio, o que faria a corte simplesmente substituir o julgamento de conveniência do legislador (e a tornaria um second guesser ). As virtudes passivas, assim, “toleram desvios de princípio” em nome de uma acomodação estável das mudanças sociais.
Essa é, para Bickel, a missão educativa da corte, instituição que cumpre o papel de “professor da cidadania” (teacher of the citizenry). Ao evitar decidir, a corte estimula um colóquio (colloquy) com os outros poderes e a sociedade. Mantém-se dentro da tensão entre princípio e conveniência, modera extremos e previne que a sociedade se divida. Esse colóquio tende a gerar uma pressão por ação legislativa que, não raro, é mais efetiva que uma ordem judicial inflexível, nos moldes de um decreto. A decisão deve ser a exceção; o exercício de virtudes passivas, a regra, um meio termo entre o judicialismo autoritário e a democracia. A corte deve ter sabedoria para deixar o colóquio decantar novos valores, e decidir somente quando a solução pareça uma decorrência natural desse processo. O princípio, nesse sentido, é um guia valorativo que se desenvolve pelo diálogo, não pela imposição unilateral. Por meio dele, a corte abre a oportunidade da “reprise legislativa”.
Compromissos pragmáticos que não alcançam a meta ótima do princípio podem ser necessários por um tempo. Fazê-los não reduz a efetividade dos princípios, mas apenas reconhece o grau de sua factibilidade num dado momento. As virtudes passivas deixam espaço aberto para isso. Como a corte somente pode decidir com base em princípio (para que seja vinculante e dotada de autoridade), a maneira de possibilitar soluções de compromissos é não decidir. Escapa da armadilha binária da obrigação de invalidar uma lei ou legitimá-la. Equilibra-se numa zona intermediária. Usa de uma válvula de escape para driblar a obrigação de decidir com base em princípio. Pratica uma sabedoria institucional ao deixar não decidido, e viabiliza um gradual exercício de “tentativa e erro”.
A corte permite que questões sejam postas no debate público, e prefere não respondê-las, exceto em circunstâncias excepcionais. Se a regra é deixar não decidido, qual o critério para saber quando, enfim, decidir? Essa é uma chave fundamental do argumento. Para Bickel, esse momento se determina por três critérios alternativos: quando a corte tem expertise especial no assunto; quando há informação e conhecimento confiável; quando seu senso político diz que é necessário. Somente deve decidir quando esgotados os recursos de promoção do diálogo, quando houver clara necessidade. Precisa adivinhar os princípios que, no futuro não distante, ganharão assentimento social. Faz um juízo prospectivo. Tem a obrigação de, em alguma medida, acertar, sob pena de cair em descrédito.
Não se trata de um critério formal, quantificável e calculável a priori , mas de um faro político, de um senso de oportunidade histórica, um radar para captar o estado de espírito da comunidade. A corte, nessas situações, está no terreno intangível do juízo de ocasião e de medida, do exercício da prudência. Bickel reconhece a dificuldade de expressar esse conceito, dado seu caráter escorregadio. É uma sabedoria prática, uma capacidade de reconhecer o momento certo segundo o caso particular. (...) A corte opera como um profeta, um líder de opinião que aponta para o futuro. Não é apenas alguém que espelha e registra as opiniões presentes.
Quando, enfim, escolhe decidir, deve também verificar o quanto, mais uma escolha orientada pelo critério da necessidade. Há decisões mais interventivas que outras e é preciso saber calcular a extensão da decisão a cada momento, de acordo com o “continuum do poder judicial”. Os movimentos da corte não devem ser repentinos e bruscos, mas cautelosos, em pequena escala (pp. 103-107(pp. 103-107); grifou-se).
Como observado por Mendes (2008)nome (ano), Bickel “não confia na legitimidade automática das grandes ousadias de ativismo judicial, que avocam o leme da história e definem a direção do progresso” (p. 110). Isso porque “a pretensão de mudanças bruscas fracassa, quanto mais as tentadas pela corte. Deve evitar espasmos e prezar pela continuidade” (p. 108). Diz, ainda, que “as virtudes passivas são, para ele, prática inevitável de uma corte duradoura. Se a corte quiser governar tudo que tocar, tornar-se-ia um ‘reino platônico contrário à moralidade do auto-governo’” (p. 109).
Para Mendesnome (ano), “virtudes passivas, colóquio socrático, arte do compromisso, prudência, longo prazo, gradualismo, pragmatismo, acomodação, estabilidade, entre outras, são palavras que geram certa perplexidade para quem está acostumado a entender o papel da corte à luz da prática de interpretação constitucional e da proteção dos direitos” (p. 101).
Contudo, esse é justamente o ponto que pode preservar ou recuperar a autoridade e credibilidade da Corte Constitucional, sobretudo no Brasil, pois embora já esteja arraigado na cultura jurídica nacional que o papel do Supremo Tribunal Federal seria a “proteção de direitos”, foi justamente isso que conduziu ao atual estado de coisas. Se a Corte agisse com maior prudência, gradualismo e acomodação de interesses antagônicos (e não passasse a deixar claro que tem lado político) em uma sociedade plural, como é a brasileira, certamente estaria melhor cumprindo seu papel de guardiã da Constituição.
Portanto, em vez de causar perplexidade, a teoria de Bickel deveria ser melhor estudada e, sobretudo, aplicada pelo STF. Gize-se que a obra de Bickel sequer foi traduzida para o português, embora escrita há mais de seis décadas, o que demonstra que há um longo caminho pela frente para que suas ideias se tornem mais conhecidas no Brasil.
Além das virtudes passivas de Bickel, convém reafirmar as principais virtutes que constituem a condição da interpretação jurídica: moderação, prudência e autocontenção do juiz, atentando para as consequências práticas de sua decisão (art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direiro Brasileiro - LINDB). Isso porque as decisões judiciais têm efeitos dinâmicos sobre toda a sociedade na formação de expectativas, havendo externalidades que não podem ser controladas ou previstas pelo julgador.
Outra condição da interpretação jurídica conforme o Estado de Direito é a preservação da ordem espontânea. Para Hayek (1985)nome (ano), nem todas as expectativas podem ser atendidas. Por isso, um bom juiz deve ter a capacidade de frustração, não podendo decidir exclusivamente conforme sua vontade, mas governado por uma decisão anterior do constituinte e/ou do legislador, ou seja, de acordo com o Direito posto.
No mesmo sentido, de acordo com O Federalista Hamilton, “para evitar um julgamento arbitrário dos tribunais, é indispensável que eles estejam submetidos a regras e precedentes estritos, que servem para definir e indicar seu dever em cada caso particular que lhes é apresentado” (Hamilton, Madison & Jay, 1993, p. 484)(Hamilton, Madison & Jay, ano, p. 484).
Todavia, ao comprometer-se com determinado resultado (a efetivação de direitos constitucionais controvertidos na própria sociedade), por mais bem-intencionado que seja, o juiz corre sério risco de comprometer sua imparcialidade e o devido processo legal, não raras vezes invadindo a esfera de atuação política, tal como ocorreu no caso da ADPF 828, a ser analisada alhures, relegando o cumprimento do legítimo mister da jurisdição, que é a pacificação dos conflitos a longo prazo e não a obtenção de resultados particulares específicos e imediatos que agradem ao julgador. A propósito, cita-se a seguinte passagem de Hayek:
A manutenção de uma ordem espontânea mediante aplicação de normas de conduta deve, portanto, visar sempre a resultados a longo prazo, ao contrário das normas organizacionais, que servem a propósitos específicos e conhecidos e devem visar essencialmente a resultados previsíveis a curto prazo. Daí a notória diferença de perspectiva entre o administrador, necessariamente voltado para efeitos particulares conhecidos, e o juiz ou o legislador, que deve estar empenhado na manutenção de uma ordem abstrata, sem levar em conta os resultados particulares previstos. Concentrar a atenção em resultados específicos leva necessariamente a uma perspectiva imediatista, uma vez que os resultados particulares só serão previsíveis a curto prazo, e gera, em consequência, conflitos entre interesses particulares que só podem ser resolvidos por uma decisão autoritária, a favor de uma parte ou de outra. A preocupação dominante com os efeitos imediatos visíveis conduz, assim, progressivamente, a uma organização dirigista de toda a sociedade. Na verdade, o que certamente morrerá, no final das contas, se nos concentrarmos nos resultados imediatos, é a liberdade (Hayek, 1985, p. 32)nome (ano, p. 32).
Por isso, o juiz deve dominar seus impulsos, dirigindo sua vontade para o exercício da racionalidade prática. Já o juiz ativista subverte o Direito, submetendo-o a sua ideologia, o que nada mais é do que tirania judicial, pois ao decidir de acordo com o sistema de valores (morais) que ele julga mais adequado segundo sua visão de mundo, e não de acordo com o que determina o ordenamento jurídico, ele modifica o Direito sem ter legitimidade para tanto.
Destarte, ao menos no Estado de Direito concebido pelo constitucionalismo liberal, é necessário que os juízes, inclusive e principalmente os da Corte Constitucional, cultivem certas virtudes passivas, especialmente no controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, sendo deferentes ao legislador, atuando com maior prudência e autocontenção no exercício da judicial review. Não cabe ao Supremo Tribunal Federal “empurrar a história”, por não se tratar de um tribunal revolucionário, sendo sua função precípua a guarda da Constituição em seu aspecto de garantir a liberdade individual através da limitação do poder do Estado e não da mera proteção de direitos e/ou promoção da justiça socials, não sendo papel da Corte promover mudanças sociais abruptas e contrárias à ordem espontânea de uma sociedade plural.
Estabelecidas as premissas dos fundamentos do Estado de Direito e do papel do Supremo Tribunal Federal nesse arranjo institucional, a partir da concepção Liberal Clássica e das virtudes passivas concebidas por Bickel, passa-se, agora, à análise do caso específico da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n.º 828, a qual tem por relator o ministro Luís Roberto Barroso, a fim de verificar se os fundamentos da decisão proferida em 03 de junho de 2021 deferindo parcialmente a medida cautelar (DJE n.º 107, divulgado em 04/06/2021), assim como das decisões posteriores que prorrogaram e/ou ampliaram os efeitos da medida cautelar e dos votos proferidos pelos demais ministros referendando as decisões do relator na referida ação estão de acordo com os pressupostos do Estado de Direito ou se tratou de mais um exemplo de ativismo judicial da Suprema Corte.
Importante pontuar que, até a data de finalização do presente artigo, não houve, ainda, o julgamento do mérito da ação, tendo o processo sido incluído em pauta publicada no DJE em 29/09/2023, mas ainda sem data prevista para julgamento pelo Plenário. Assim, para o propósito do presente estudo, indaga-se, a partir da fundamentação teórica desenvolvida nos tópicos anteriores: o conhecimento e deferimento de medida cautelar incidental na ADPF 828 pelo Supremo Tribunal Federal está de acordo com os fundamentos do Estado de Direito, notadamente com os postulados da separação dos poderes (Montesquieu) e do alcance da jurisdição constitucional? O STF atuou dentro dos limites de sua função institucional ou usurpou de competências legislativas e/ou executivas no caso?
Na espécie, trata-se de arguição de descumprimento de preceito fundamental, com pedido de medida cautelar ajuizada por partido político de (extrema) esquerda, apontando “a violação do direito à saúde, a ausência de políticas públicas de moradia à população em situação de hipervulnerabilidade, o descumprimento de normas relativas à regularização fundiária e gestão das cidades e a ameaça ao direito à vida”, consoante extrai-se da síntese da demanda constante do relatório da decisão proferida em 03/06/2021. Entre os vários pedidos formulados pelo autor da ação, além da suspensão dos processos ou procedimentos judiciais ou extrajudiciais de remoção e/ou desocupação, reintegrações de posse ou despejo enquanto perdurassem os efeitos da crise sanitária da Covid-19, requereu a criação de “Políticas Públicas de moradias populares em caráter Permanente”, evidenciando a tentativa de implantação de política pública de habitação por via judicial, utilizando o contexto da pandemia como mera “cortina de fumaça” para ocultar sua verdadeira intenção.
Tal fato não passou despercebido pela Advocacia-Geral da União (AGU) que, ao se manifestar pelo não conhecimento da ação, destacou a “ausência de correlação entre a causa de pedir e alguns dos pedidos formulados, pois a fundamentação desenvolvida centra-se no contexto da pandemia e parte dos pedidos de mérito diz respeito à formulação de políticas públicas perenes e não relacionadas à situação emergencial relativa à disseminação da COVID-19”. Foi observada igualmente pela União a ofensa ao princípio da subsidiariedade, previsto no art. 4º, §1º, da Lei n.º 9.882/99, tendo em vista que o controle judicial requerido poderia e deveria ser exercido na via difusa, analisando cada caso concreto individualmente, e não em controle concentrado. Referiu, outrossim, que não pode a ADPF ser utilizada para coordenação, supervisão e monitoramento de políticas públicas, havendo necessidade de deferência aos Poderes Legislativo e Executivo sobre a matéria.
Também a Procuradoria-Geral da República (PGR) opinou pelo não conhecimento da ação, por falta de atendimento do requisito da subsidiariedade, defendendo não ser cabível ADPF “para obtenção de determinação judicial ampla que, desconsiderando as peculiaridades de cada caso, determine a suspensão generalizada de todas as medidas de remoção e/ou desocupação, reintegrações de posse ou despejos em todo o território nacional”, argumentando que a atuação judicial com tamanha generalidade e abstração o aproximaria da condição de legislador positivo, não cabendo ao Poder Judiciário definir políticas públicas.
Não obstante as legítimas objeções levantadas, o Ministro Relator não só conheceu da ação, como deferiu parcialmente a medida cautelar para suspender medidas administrativas ou judiciais que resultassem em “despesos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que sirvam de moradia ou que representem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis, nos casos de ocupações anteriores a 20 de março de 2020” e para suspender “a possibilidade de concessão de despejo liminar sumário, sem a audiência da parte contrária (art. 59, § 1º, da Lei n.º 8.425/1991), nos casos de locações residenciais em que o locatário seja pessoa vulnerável”, inicialmente pelo prazo de 6 (seis) meses, porém prorrogando a medida em diversas oportunidades, por entender que caberia ao STF “a proteção da vida e da saúde durante a pandemia”, conforme notícia divulgada na página eletrônica do Tribunal em 30/06/2022, ou seja, mais de um ano depois da primeira decisão, quando a matéria já havia sido, inclusive, disciplinada pelo legislador através da Lei n.º 14.216/2021.
Na primeira decisão (DJE n.º 107, divulgado em 04/06/2021), de forma muito superficial, entendeu o Ministro que “o requisito da subsidiariedade (...) está atendido, tendo em vista que não há outro instrumento adequado a sanar a violação a direitos fundamentais de maneira ampla e uniforme no país, com efeitos gerais e vinculantes”. Nesse ponto, fica bastante evidente que o Relator objetivava atuar como verdadeiro legislador positivo, definindo um prazo de suspensão de medidas legalmente previstas no ordenamento jurídico, de forma geral e abstrata – ou “de maneira ampla e uniforme” e “com efeitos gerais e vinculantes”, segundo suas próprias palavras –, a fim de implementar política pública que também não pertencia a sua esfera de autuação, contornando sem maiores constrangimentos os requisitos de admissibilidade da ADPF e o próprio direito de propriedade.
Está claro que o Senhor Ministro queria tomar uma decisão de mérito a respeito, mesmo que tal não estivesse em sua esfera de competência, como demonstrado pela AGU e pela PGR em suas manifestações no processo. E o mais grave não é nem o fato de ter tomado uma decisão contornando os requisitos de admissibilidade da ação, mas o fato de acreditar verdadeiramente que “proteger a saúde das pessoas vulneráveis” e “achatar a curva de contágio” estava entre suas funções como magistrado, não dedicando uma linha sequer de sua fundamentação para afastar a alegação de ofensa à separação dos poderes.
O seguinte excerto da fundamentação da decisão ilustra o ponto:
33. Entendo, portanto, que se justifica a intervenção judicial para a proteção de direitos fundamentais, especialmente de pessoas vulneráveis. Como acentuado pela relatoria especial da ONU, a moradia se tornou a linha de frente da defesa contra o coronavírus. Se a recomendação principal para conter a pandemia da COVID-19 é que as pessoas fiquem em casa, é preciso realizar um esforço acentuado para evitar que aumente o número de desabrigados.
Com relação aos direitos de propriedade, possessórios e fundiários, a decisão limitou-se a referir que eles “precisam ser ponderados com a proteção da vida e da saúde das populações vulneráveis, dos agentes públicos envolvidos e também com os riscos de incremento da contaminação para a população em geral”. Contudo, na hipótese, não se trata de “ponderação”, mas de puro e simples afastamento daqueles direitos de forma geral e abstrata em todo o país – sendo o primeiro deles também um direito fundamental previsto na Constituição (art. 5º, XXII) –, sem que se pudesse verdadeiramente ponderar as peculiaridades de cada caso concreto em se tratando de ocupações (invasões) anteriores à pandemia, como seria a verdadeira função do Poder Judiciário. Não se pode olvidar que se tratam de invasões coletivas de imóveis alheios, ou seja, esbulho possessório.
O mais interessante é que estavam abrangidos pela medida cautelar deferida não só os imóveis que servissem de “moradia” de “populações vulneráveis”, mas também imóveis que representassem “área produtiva pelo trabalho individual ou familiar” dessas pessoas. Ora, se o objetivo era permitir que as pessoas ficassem em casa, qual o sentido de a medida abranger também “áreas produtivas pelo trabalho”, que evidentemente não se referem ao local destinado à moradia, mas sobretudo a áreas rurais invadidas por conhecidos movimentos de cunho político?
E se a preocupação com o contágio das populações ditas vulneráveis era tão grande, por que não foi deferida a medida também em relação às “ocupações coletivas recentes”, assim consideradas as posteriores a 20 de março de 2020, já que o risco de contágio da doença não se importava com a data da ocupação? Isso só evidencia que se tratou de mera manifestação de vontade, com a escolha das medidas a serem determinadas conforme a opinião pessoal do julgador sobre o que deveria ou não ser acolhido, e não com base no Direito – isto é, com base em normas de conduta justa aplicáveis igualmente a todos, como diria Hayek –, tratando-se de manifesto arbítrio judicial.
Não há fundamentação jurídica ou exercício da racionalidade prática, tampouco da prudência e moderação exigidas de uma Corte Constitucional. Apenas manifestação de vontade.
O ativismo judicial já era evidente de início, porém, ao longo da tramitação da ação, foi muito além, tudo referendado pela maioria dos integrantes da Suprema Corte.
Como dito, após a primeira decisão, a Lei n.º 14.216, de 07/10/2021, disciplinou a matéria, estabelecendo medidas excepcionais para “suspender o cumprimento de medida judicial, extrajudicial ou administrativa que resulte em desocupação ou remoção forçada coletiva em imóvel privado ou público, exclusivamente urbano, e a concessão de liminar em ação de despejo de que trata a Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, e para estimular a celebração de acordos nas relações locatícias”, até 31/12/2021 (art. 2º).
Nada obstante, em 01/12/2021 (DJE n.º 239, divulgado em 02/12/2021), o Relator deferiu parcialmente pedido de medida cautelar incidental, para determinar “a extensão, para as áreas rurais, da suspensão temporária de desocupações e despejos, de acordo com os critérios previstos na Lei nº 14.216/2021, até o prazo de 31 de março de 2022” (grifou-se), por entender que haveria omissão inconstitucional na referida lei ao determinar sua aplicação apenas para imóveis urbanos, assim como que o prazo legal não seria suficiente para o arrefecimento da pandemia. Constou, ainda, da ementa da decisão a seguinte determinação, que bem evidencia seu conteúdo normativo, e não jurisdicional:
(...)
4. No tocante aos imóveis situados em áreas rurais, há uma omissão inconstitucional por parte do legislador, tendo em vista que não há critério razoável para proteger aqueles que estão em área urbana e deixar de proteger quem se encontra em área rural. Por isso, nessa parte, prorrogo a vigência da medida cautelar até 31.03.2022 e determino que a suspensão das ordens de desocupação e despejo devem seguir os parâmetros fixados na Lei nº 14.216/2021.
5. Faço apelo ao legislador, a fim de que prorrogue a vigência do prazo de suspensão das ordens de desocupação e despejo por, no mínimo, mais três meses, a contar do prazo fixado na Lei nº 14.216/2021, tendo em vista que os efeitos da pandemia ainda persistem.
6. Caso não venha a ser deliberada a prorrogação pelo Congresso Nacional ou até que isso ocorra, concedo a medida cautelar incidental, a fim de que a suspensão determinada na Lei nº 14.216/2021 siga vigente até 31.03.2022.
Como se vê, o “apelo ao legislador” é meramente retórico, pois, se não houvesse deliberação legislativa, a matéria já estava decidida de antemão pela Corte. Isso, evidentemente, não está de acordo com as virtudes passivas de Bickel, notadamente o diálogo institucional (colóquio socrático), porque a Corte efetivamente decidiu a questão para além do que tinha sido disciplinado em lei. E, ao fazer um “apelo ao legislador” para que este viesse a deliberar no mesmo sentido da decisão judicial, deixa claro que, por seu turno, legislou enquanto o legislador não legislasse , usurpando a competência deste último.
Mais uma vez, não há fundamentos jurídicos, mas apenas fáticos, relacionados aos aspectos sanitários e socioeconômicos da pandemia. A propósito, cita-se o seguinte excerto da fundamentação:
26. Na ocasião em que concedi a medida cautelar, registrei que se deveria aguardar a normalização da crise sanitária para a retomada da execução de ordens de despejo. Por mais que se perceba uma melhora nos indicadores sanitários da pandemia, ainda não se verifica um cenário de normalização. A isso se soma que o agravamento da pobreza extrema no Brasil pode ter como consequência o aumento do número de desabrigados e, ao fim, contribuir não apenas para a conflagração de uma situação aguda de flagelo social, mas também para o recrudescimento da crise sanitária.
27. Em atenção ao princípio da precaução, portanto, se recomenda que a suspensão das ordens de despejo e desocupação seja prorrogada por mais um período. Esclareço que não se pretende, pela via da medida cautelar, solucionar a questão do déficit habitacional no Brasil, nem impedir ad aeternum a execução das medidas de despejo. O que se busca é tão somente minimizar os impactos socioeconômicos da pandemia, enquanto ela ainda está em curso . (destacado)
Essas ponderações, no entanto, caberiam ao legislador na definição da política pública e ao Executivo na sua implementação, não sendo papel do julgador de uma ação de controle concentrado de constitucionalidade tomar uma decisão levando em conta “os efeitos socioeconômicos da pandemia, que vem agravando de forma significativa a pobreza no país”, tal como foi feito. Não se trata de argumento jurídico, mas essencialmente político, cujas eventuais medidas de mitigação deveriam ser discutidas no Parlamento e não na via judicial.
Em 30/03/2022 (DJE n.º 61, divulgado na mesma data), foi deferida nova prorrogação do prazo da cautelar até 30/06/2022, utilizando, basicamente, os mesmos argumentos das decisões anteriores, mesmo reconhecendo “a melhora do cenário, com a evolução da vacinação e a redução do quantitativo de óbitos e de novos casos”, mas ainda ponderando que “sob o ponto de vista socioeconômico, houve uma piora acentuada na situação de pessoas vulneráveis”, como constou na ementa da decisão. Fica evidente, portanto, que a crise sanitária foi usada como mero pretexto para a implantação de política econômica, pela via judicial, à custa da propriedade alheia, sem qualquer indenização.
Em Sessão Virtual Extraordinária de 5.4.2022 a 6.4.2022, o Plenário do Tribunal, novamente por maioria, ratificou a medida cautelar parcialmente deferida, nos termos do voto do Relator (DJE n.º 101, divulgado em 25/05/2022). Na ocasião, embora tenha acompanhado a conclusão do Relator, o Ministro Nunes Marques lembrou que as medidas deferidas “impõem sacrifício aos titulares do direito de propriedade, muitos dos quais têm como única fonte de renda seus imóveis, por vezes apenas um, para alugar”. Observou, ainda, que o “Judiciário deve, ainda, exercer seu papel dentro de certas balizas traçadas pela própria Carta da República, entre as quais a observância aos freios e contrapesos estabelecidos pelo princípio da separação dos poderes. Nisso, aliás, registro que a questão do direito de moradia neste país envolve debates complexos e plurais, próprios ao Legislativo”.
Também o Ministro André Mendonça entendeu que não mais subsistia “espaço de atuação à jurisdição constitucional, pelo menos aquela exercida no plano abstrato, através de instrumento de controle concentrado como o é a arguição de descumprimento de preceito fundamental, ante o grau de generalidade e abstração que lhe é inerente”, não havendo como “se prescindir da análise dos contornos de cada caso concreto, a ser realizada pelo juiz natural no bojo de instrumento processualmente adequado – e não em ações de controle concentrado –, para que se possa alcançar, em cada situação específica, a conclusão que melhor pondere os direitos fundamentais em choque”, defendendo explicitamente “a adoção de postura de autocontenção [pela] Suprema Corte” naquele momento. No entanto, o Ministro ficou vencido, tendo a maioria dos pares acompanhado o Relator.
Ademais, em 30/06/2022 (DJE n.º 129, divulgado na mesma data) houve nova prorrogação do prazo da cautelar (pela terceira vez) até 31/10/2022, com base nos mesmos fundamentos da prorrogação anterior, que, como já demonstrado, não eram jurídicos, mas intrinsecamente políticos. A bem da verdade, contudo, essa foi a primeira vez em que o Relator observou que “assim como o direito à moradia, o direito de propriedade possui proteção constitucional”, mas ainda assim manteve a suspensão dos atos de desocupação e despejo.
A nova cautelar incidental foi ratificada por maioria do Tribunal em Sessão Virtual Extraordinária de 4.8.2022 a 5.8.2022, vencidos os Ministros André Mendonça e Nunes Marques (DJE n.º 175, divulgado em 01/09/2022), este último defendendo que “compete ao Judiciário atuar com autocontenção, em respeito, conforme tenho defendido, ao princípio da separação dos poderes, corolário do sistema de freios e contrapesos, ou checks and balances” e demonstrando que não houve omissão do legislador, tendo sido estabelecidas regras para o período posterior ao término do prazo de suspensão na própria Lei n.º 14.216/2021 (art. 2º, §4º), além das regras perenes dispostas no Código de Processo Civil (CPC) sobre a possibilidade de mediação em ações possessórias (art. 565). Da mesma forma, o Ministro André Mendonça novamente defendeu “a adoção de postura de autocontenção por esta Suprema Corte”.
Nada obstante, como dito, os defensores dessa postura de maior autocontenção e deferência ao legislador restaram vencidos, tendo a maioria dos ministros acompanhado o entendimento do Relator.
Por fim, quando não mais se vislumbrava qualquer razão fática para nova porrogação da cautelar, embora novamente requerida pelos autores da ação (a esta altura, diversos coletivos de esquerda haviam encampado a ação ao lodo do partido autor originário), em 31/10/2022 (prazo final da última prorrogação), o Ministro Relator proferiu nova decisão (DJE n.º 242, divulgado em 29/11/2022), agora estabelecendo um “regime de transição” para a retomada da execução das decisões suspensas para o caso das ocupações coletivas, determinando, inclusive, a “criação imediata, nos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais, de Comissão de Conflitos Fundiários”, com “atribuição de realizar visitas técnicas, audiências de mediação e, principalmente, propor a estratégia de retomada da execução de decisões suspensas pela presente ação, de maneira gradual e escalonada”, funcionando, nos casos judicializados “como órgão auxiliar do juiz da causa”; além de outras diversas medidas administrativas nas remoções extrajudiciais, como “dar ciência prévia e ouvir os representantes das comunidades afetadas”, “conceder prazo razoável para a desocupação pela população envolvida” e adoção de “medida eficaz para resguardar o direito à moradia”.
Eis a nova e derradeira (até aqui) manifestação da sanha normativista da Corte Constitucional, determinando imperativamente aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais que, imediatamente, criassem um novo “órgão auxiliar do juiz” sem previsão legal, assim como a adoção, pela Administração, de diversas medidas não previstas em lei. Quanto à determinação para a realização de audiência de mediação e inspeção judicial nas áreas em litígio, estas já estavam previstas na própria Lei n.º 14.216/2021, porém deveriam ser realizadas pelo juiz da causa e não por uma “comissão”.
A tutela provisória incidental foi referendada, por maioria, pelo Plenário do Tribunal em Sessão Virtual Extraordinária de 01.11.2022 (18h00) a 02.11.2022 (17h59), novamente ficando vencidos parcialmente os Ministros André Mendonça e Nunes Marques (DJE n.º 243, divulgado em 30/11/2022).
Aqui, afora tudo o que já foi referido anteriormente, convém destacar o voto vencido do Ministro André Mendonça, observando que o Ministro Relator desconsiderou a competência normativa constitucionalmente conferida aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais como decorrência da garantia de autogoverno (art. 96, I, “a”, da Constituição) e a própria jurisprudência da Corte (ADI n.º 410-MC/SC, Rel. Min. Celso de Mello, Red. do Acórdão Min. Carlos Velloso, j. 27.8.1992, p. 17.6.1994), ao determinar a instauração das comissões de conflitos fundiários em âmbito nacional. A propósito, cita-se parte do voto vencido:
(...)
17. Entendo, contudo, na esteira do que antecipei linhas acima, e com a mais respeitosa vênia às compreensões em sentido diverso, que a determinação de instalação de tais comissões vai de encontro ao comando normativo extraído do art. 96, I, a, do Texto Constitucional, que assegura aos tribunais judiciais nacionais o “postulado do autogoverno”, nos termos do que decidido por essa Suprema Corte no âmbito da ADI nº 410-MC/SC, Rel. Min. Celso de Mello, Red. do Acórdão Min. Carlos Velloso , j. 27/08/1992, p. 17/06/1994.
18. Para deixar indene de dúvidas, registro expressamente que, em linha com os motivos elencados pelo e. Relator, entendo que a concentração de um feixe de atribuições que gozam de inegável peculiaridade técnica e operacional – sobretudo quando cotejadas com o atuar ordinário da magistratura –, a exemplo da comissão de conflitos fundiários, exitosamente instalada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, é diretriz que potencializa a eficiência administrativa, na medida em que possibilita a aquisição de “know how” por aqueles que, destacados a tal atuação, evidentemente se especializarão no tratamento da questão. Minha dificuldade em acompanhar o eminente Relator exsurge da natureza impositiva da aludida medida. Imperatividade esta que, a meu sentir, somente poderia advir legitimamente de ato normativo primário, editado pelo Poder Legislativo, descabendo ao Poder Judiciário imiscuir-se, com tal grau de intensidade – e no âmbito da jurisdição constitucional abstrata – na seara de atuação constitucionalmente reservada à gestão de cada tribunal. (grifo do original; sublinhou-se)
Opostos embargos de declaração alegando, entre outras coisas, a afronta à separação dos poderes, no voto condutor da decisão o Relator limitou-se a aduzir que “coube ao Supremo Tribunal Federal, à luz da Constituição, fixar diretrizes para o Poder Público e os demais órgãos do Poder Judiciário com relação à retomada das medidas administrativas e judiciais que se encontravam suspensas com fundamento na presente ação” e que a “Corte, ao estabelecer regime de transição, objetivou a proteção da vida e da saúde durante a pandemia, e não traçar a política fundiária e habitacional do país” (DJE publicado em 01/06/2023).
Ocorre que este não era e não é o papel da Corte Constitucional, seja em período de normalidade, seja sobretudo em período de crise, como ocorreu na pandemia, em que se lhe exigiria maior serenidade para refrear eventuais abusos dos outros poderes e dos próprios jurisdicionados, notadamente os partidos políticos de oposição naquele momento. Porém, quando tais abusos são endossados pela própria Corte Constitucional, não há a quem recorrer.
Cabível, neste ponto, trazer à lume a seguinte lição de Hayek, que, embora estivesse se referindo ao desempenho de funções governamentais pelo legislativo, parece plenamente aplicável ao caso da ADPF 828, mutatis mutandis:
Embora seja evidentemente necessário, para se ter um governo democrático, um organismo representativo em que o povo possa expressar seus desejos com relação a todas as questões ligadas às ações do governo, um organismo voltado sobretudo para esses problemas é pouco adequado à função de legislar propriamente dita. Esperar que se desincumba das duas atribuições significa pedir-lhe que se prive de alguns dos meios que lhe permitem alcançar de modo mais conveniente e rápido as metas imediatas do governo. Ao desempenhar funções governamentais, ele de fato não será cerceado por nenhuma norma geral, porquanto pode criar, a qualquer momento, normas que o autorizem a fazer o que a tarefa imediata parece exigir. Na realidade, toda decisão que tome sobre determinado assunto revogará automaticamente qualquer norma já existente que esteja infringindo. Semelhante combinação de poder governamental e legislativo num único organismo representativo é sem dúvida incompatível com o princípio da separação dos poderes e os ideais do governo submetido à lei e com o estado de direito (Hayek, 1985, vol. III, p. 29(nome, ano, vol. II, p. 29; grifou-se).
Conquanto Hayek estivesse preocupado apenas com a combinação do poder governamental e legislativo num único organismo representativo, no caso da pandemia do coronavírus, houve a combinação do poder governamental, legislativo e judiciário num único órgão que sequer pode ser considerado representativo, porque seus membros não são eleitos, não havendo mais dúvida que em diversas ocasiões o STF se arrogou de poderes governamentais e, até mesmo, legislativos, sob o pretexto de combater a pandemia, o que é ainda mais ofensivo ao Estado de Direito, sendo o caso específico da ADPF 828 apenas mais um exemplo disso.
Realmente, ainda segundo Hayek, “se os que decidem sobre questões específicas podem elaborar qualquer lei que lhes convenha para qualquer fim, evidentemente não estão sujeitos ao estado de direito; e certamente não corresponde ao ideal do estado de direito (rule of law) que tudo quanto um grupo de pessoas, ainda que majoritário, decida sobre determinada questão seja chamado de lei (law)” (Hayek, 1985, vol. III, pp. 29-30). Trazendo para o caso ora em análise, não corresponde ao ideal do Estado de Direito que um grupo de ministros da Suprema Corte, ainda que majoritário, decida sobre a aplicação de políticas públicas de forma geral e abstrata, atuando como órgão governamental e legislativo.
Ademais, independentemente das nobres intenções, não era função da Corte Constitucional utilizar-se de uma ação judicial de controle abstrato de constitucionalidade para legitimar a tentativa de um partido político de oposição (à época) de efetivar políticas públicas habitacionais em benefício de “populações vulneráveis”, ainda mais por via oblíqua e relativizando o direito de propriedade, que, é bom que se reitere, também ostenta índole constitucional, sendo igualmente um direito fundamental (art. 5º, XXII, da Constituição da República de 1988).
Pode-se argumentar que a situação de emergência em saúde pública então vivenciada, decorrente da Covid-19, constituía motivo legítimo para a superação dos fundamentos do Estado de Direito antes analisados, notadamente a separação dos poderes e o devido processo legal no tocante aos requisitos de admissibilidade da ADPF.
É bem verdade que o próprio Hayek reconhece a possibilidade de existência de “poderes de emergência” em circunstâncias em que a própria manutenção da ordem global da sociedade a longo prazo está em risco, como, por exemplo, “quando irrompe rebelião ou violência, ou quando uma catástrofe natural exige ação rápida por todos os meios possíveis, torna-se necessário conferir a alguém poderes de organização compulsória que normalmente ninguém possui”, se a finalidade disso for escapar à própria destruição da sociedade (Hayek, 1985, vol. III, p. 129) (nome, ano, vol. III, p. 129).
No entanto, o próprio autor austríaco adverte que “as condições em que esses poderes de emergência podem ser concedidos sem se criar o risco de que sejam mantidos quando a necessidade absoluta tiver passado constituem as questões mais difícies e importantes a serem solucionadas por uma constituição”. Isso porque as emergências “sempre foram pretexto para o solapamento das salvaguardas da liberdade individual – e, uma vez que estas estejam suspensas, não é difícil para o detentor desses poderes de emergência tomar as medidas necessárias para que o estado de exceção persista” (Hayek, 1985, vol. III, p. 129)(nome, ano, vol. III, p. 129).
No caso, o Decreto Legislativo n.º 6, de 20/03/2020, que reconheceu a ocorrência de estado de calamidade pública em razão da pandemia do coronavírus, o fez tão somente para os fins do art. 65 da Lei Complementar n.º 101/2000, notadamente para dispensar o atingimento dos resultados fiscais previstos na 2020 e para afastar a limitação de empenho de que trata o art. 9º da LC n.º 101/2000, ou seja, foi reconhecido “estado de calamidade pública” pelo Congresso Nacional tão somente com objetivos fiscais, para que não ficasse configurado crime de responsabilidade do presidente da República na execução orçamentária e financeira dos recursos relacionados ao enfrentamento da pandemia.
Mas isso, de forma alguma, abolia o Estado de Direito no País, não havendo a suspensão de qualquer direito individual, notadamente o direito de propriedade atingido pela medida deferida na ADPF 828. Tampouco atribuiu-se ao STF a função de implementar a política pública de enfrentamento da pandemia.
Não se nega que a situação da crise sanitária era grave naquele momento. Contudo, a definição e aplicação de políticas públicas tendentes a contorná-la incumbia aos Poderes Legislativo e Executivo, respectivamente, devendo haver um mínimo de autocontenção do Judiciário naquela situação, até mesmo para preservar sua imparcialidade no futuro julgamento de eventuais ações ajuizadas contra as diversas e graves violações de direitos individuais realizadas por agentes de autoridades públicas durante aquele período. Com todo o respeito, as decisões analisadas não foram fundamentadas de forma racional ou jurídica, sendo movidas por um senso de alcançar um resultado específico que agradava ao próprio julgador e não o de aplicar o Direito imparcialmente, como lhe era exigido.
Importante mencionar, por outro lado, que a pandemia da Covid-19 foi utilizada apenas como pretexto para o ajuizamento da ADPF 828, a qual ocultava objetivos outros (de cunho meramente político), como deixa claro o próprio pedido formulado pelo partido político autor, de implantação de políticas públicas permanentes de habitação e regularização fundiária, além da tentativa de institucionalização do calote de alugueis com a suspensão total dos despejos por falta de pagamento.
Demais disso, a decisão é contraditória, na medida em que impede o desfazimento de ocupações coletivas, para, supostamente, garantir a política do isolamento social. Ora, como pode, em uma ocupação coletiva, haver “isolamento”?
Logo, a situação de emergência em saúde pública não constituía motivo legítimo para superação do Estado de Direito e do devido processo legal no caso da ADPF 828, tratando-se de um ato de vontade da maioria dos integrantes da Corte Constitucional, que pretendiam atingir um resultado final específico, independentemente dos meios utilizados.
Note-se, a propósito, que a capa da referida ação na internet indica que ela está a serviço de diversos objetivos da Agenda 2030 da ONU, a saber: 1 – Erradicação da pobreza; 3 – Saúde e bem-estar; 11 – Cidades e comunidades sustentáveis; 16 – Paz, justiça e instituições eficazes, como pode ser visto na Figura 1.
Ao demonstrar tão claramente a adoção de determinada agenda de origem internacional e coletivista, há inegável comprometimento da credibilidade das decisões do Tribunal perante a sociedade, por colocar em dúvida a convicção dos jurisdicionados acerca da imparcialidade do julgamento, condição necessária ao bom exercício da jurisdição para pacificação dos conflitos, sobretudo em matéria constitucional.
Como dito, os fundamentos do Estado de Direito consistem na limitação do poder governamental, estabelecendo salvaguardas institucionais para a garantia e proteção da liberdade individual, cujo mecanismo mais eficaz concebido pelo constitucionalismo liberal foi a separação dos poderes entre legislativo, executivo e judiciário, com um poder limitando o outro através do sistema de freios e contrapesos previsto na respectiva constituição (checks and balances), sendo o judiciário, ao menos em tese, o mais fraco dos três.
Para tanto, é necessário que os juízes, inclusive e principalmente os da Corte Constitucioinal, cultivem certas virtudes passivas, especialmente no controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, sendo deferentes ao legislador, atuando com maior prudência e autocontenção no exercício da judicial review. Não cabe ao Supremo Tribunal Federal “empurrar a história”, por não se tratar de um tribunal revolucionário, sendo sua função precípua a guarda da Constituição em seu aspecto de garantir a liberdade individual através da limitação do poder do Estado e não da mera proteção de direitos e/ou promoção da justiça social, não sendo papel da Corte promover mudanças sociais abruptas e contrárias à ordem espontânea de uma sociedade plural.
A partir da análise da ADPF n.º 828, conclui-se que as decisões judiciais proferidas são incompatíveis com o princípio da separação dos poderes, um dos fundamentos do Estado de Direito, por limitar o exercício do poder de polícia administrativa no controle de ocupações irregulares de imóveis alheios, seja por esbulho possessório, seja por falta de pagamento de aluguel, gerando um verdadeiro estímulo ao descumprimento da lei. Ademais, também houve ofensa à separação dos poderes pela usurpação da definição e aplicação de políticas públicas habitacionais e sanitárias por meio de ação judicial de controle abstrato de constitucionalidade, além da determinação de criação de um órgão não previsto em lei por todos os tribunais de justiça e tribunais regionais federais do País, em ofensa à garantia de autogoverno dos tribunais prevista na Constituição (art. 96, I, “a”).
A ADPF 828, portanto, trata-se de mais um exemplo ilustrativo da aplicação das teorias atualmente dominantes no pensamento jurídico (neoconstitucionalismo; efetivação de direitos constitucionais), representando na prática o ativismo judicial, com a judicialização de questões políticas, tornando-se o STF uma espécie de “instância revisora” dessas discussões.
O conhecimento e julgamento dessa ação evidencia um dos principais problemas atuais na interpretação e aplicação do Direito, que é a dificuldade em interpretá-lo e aplicá-lo imparcialmente, evitando sua colonização pela moral, pela política ou até mesmo pela economia. Critérios como “justiça social”, “proteção aos vulneráveis”, entre outros conceitos jurídicos indeterminados tão em voga atualmente, não deveriam determinar a atuação do juiz, sendo sua função, segundo a tradição do constitucionalismo liberal, o julgamento racional de casos concretos, sem assumir uma posição a priori em defesa de determinadas agendas, por mais relevantes ou virtuosas que possam parecer.
Na espécie, não foi respeitada nem a forma nem a autonomia do Direito, a primeira, por não terem sido devidamente observados os requisitos legais de admissibilidade da arguição de descumprimento de preceito fundamental; e a segunda, por ter sido a ação utilizada para atingir um resultado específico decorrente de uma agenda predeterminada, utilizando-se de fundamentos essencialmente políticos e não jurídicos.
Com isso, restou demonstrado, data maxima venia, que o Supremo Tribunal Federal desbordou de suas funções no exercício da jurisdição constitucional, atuando ora como legislador positivo, ao suspender medidas legalmente previstas, fixando prazos de suspensão de forma arbitrária, além de determinar a criação de um novo órgão não previsto em lei como auxiliar do juízo por todos os tribunais ordinários inferiores, ofendendo a garantia do autogoverno assegurada pela Constituição em favor destes; ora como administrador, ao pretender efetivar a aplicação de políticas públicas de forma geral e abstrata no contexto de uma ação judicial de natureza objetiva, impedindo que fossem analisadas as peculiaridades de cada caso concreto pelas autoridades públicas com atribuição para tanto, violando pressupostos basilares do Estado de Direito e a própria Constituição da República de 1988.
1. Essas teorias antiformalistas do Direito são decorrência direta do neoconstitucionalismo (ou “novo constitucionalismo”), ao menos na América Latina, como demonstra a seguinte passagem: Muito do trabalho de tendência antiformalista que recentemente se levou a cabo na América Latina têm estado vinculado, primeiramente, com o novo constitucionalismo e, dentro dele, com uma nova e dinâmica consciência de que existem direitos constitucionais justiciáveis por fora e por cima da lei comum. As reformas constitucionais da última década construíram um lugar desde o qual o antiformalismo pode ser entusiastamente defendido e expandido como uma teoria jurídica correta. (López Medina, 2016, p. 15). Em contraponto, no presente estudo, defende-se uma teoria formal do Direito, assim ilustrada a partir do pensamento de Barzotto (2017, p. 82): O direito moderno possui um caráter formal na medida em que sua obrigatoriedade não está vinculada a qualquer conteúdo ético, político, econômico, etc., mas por manifestar-se na forma de uma norma geral, cuja criação (positividade) e aplicação ocorrem segundo um determinado procedimento. Este direito expressa a racionalidade formal própria à dominação legal, que se opõe à dominação tradicional tanto dos poderes teocráticos, como dos poderes patrimonialistas, orientados por fins materiais. (...). O direito se distingue da ética quando ele é direito formal, ou seja, quando sua validade não deriva de seu conteúdo moral, mas das características formais de suas normas: generalidade, positividade e procedimentalidade.
2. Segundo o autor, “a regra de reconhecimento [rule of recognition] desempenha funções importantes em relação ao desacordo na sociedade”, sendo a mais relevante delas definir “o ponto em que uma visão privada dos membros da sociedade, ou de secções influentes ou grupos poderosos nela, deixa de ser a sua visão privada e se torna (ou seja, afirma ser) uma visão vinculativa para todos os membros, independentemente da sua discordância com isso” (Waldron, 1999, p. 39 – a tradução é minha). Nesse contexto, a regra de reconhecimento “é uma prática complexa entre juízes e outros funcionários, pela qual as regras são identificadas como lei por referência a certos critérios” (p. 38).
3. Citando O Espírito das Leis de Montesquieu.
4. Parafraseando frase atribuída a Rui Barbosa.
6. (Aristóteles, 1985).
7. Como exemplo de um discurso que, independente do conteúdo, tem natureza intrinsecamente política (apontando caminhos para que empurremos a história “na direção certa”), ver o vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=U21hFXrlQGs
8. Reportagem da CNN Brasil: Ministros do Supremo veem “traição” do governo em aprovação de PEC e dizem que “lua de mel acabou”. Colhe-se do inteiro teor da reportagem o seguinte excerto perturbador em um Estado de Direito: “De acordo com relatos feitos à CNN, a posição favorável de Wagner à PEC provocou a ira dentro do Supremo. Ministros chegaram a ligar para o time palaciano e para senadores que estavam no plenário em busca de explicações”. Publicado em 23/11/2023 às 09:47. Atualizado em 23/11/2023 às 10:13. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/ministros-do-supremo-veem-traicao-do-governo-em-aprovacao-de-pec-e-dizem-que-lua-de-mel-acabou/
9. No original: The rule that the Court must legitimate whatever it is not justified in striking down fails to attain its intended purpose of removing the Court from the political arena; rather, it works an uncertain and uncontrolled change in the degree of the Court's intervention, and it shifts the direction. In the course of achieving this result, it excises a great deal of what the institution is capable of doing without undue offense to democratic theory and practice. At the root is the question — in the large — of the role of principle in democratic government. No attempt to lift the Court out of the Lincolnian tension can be successful. The rule of the neutral principles merely distorts the tension, by placing the weight of the Court most often on the side of expediency; for that weight is felt whenever the Court legitimates legislative choices on the constitutional merits. The Court is able to play its full role, as it did in the School Segregation Cases, maintaining itself in the tension on which our society thrives, because it has available the many techniques and devices of the mediating way between the ultimates of legitimation and invalidation. This, as I shall try to show, is the meaning of the deliberate-speed formula itself. // It follows that the techniques and allied devices for staying the Court's hand, as is avowedly true at least of certiorari, cannot themselves be principled in the sense in which we have a right to expect adjudications on the merits to be principled. They mark the point at which the Court gives the electoral institutions their head and itself stays out of politics, and there is nothing paradoxical in finding that here is where the Court is most a political animal. (...) // But this is not to concede unchanneled, undirected, uncharted discretion. It is not to concede decision proceeding from impulse, hunch, sentiment, predilection, inarticulable and unreasoned. The antithesis of principle in an institution that represents decency and reason is not whim or even expediency, but prudence. And so all the significant questions are still before us. We have touched so far only on the sort of generalization that cannot resolve a single concrete case, but without the aid of which no case can be sensibly decided. What, then, are the considerations in various categories of cases? I propose to attempt an illustrative unfolding of some of the devices for deciding not to decide. I shall start with certain elements of ripeness that should be and often are reflected in the Court's denial of petitions for certiorari. Thence I shall peel down to other—perhaps they may be thought of as deeper—layers. In such an exercise, it is necessary to soak the reader in rather full details of actual cases (Bickel, 1986, pp. 131-133).
10. Art. 4º (...) § 1º Não será admitida arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.
11. Sic. O correto seria Lei n.º 8.245/1991, e não como constou na decisão.
12. https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=489809&ori=1
13. Importante observar que a eficácia da política do fique em casa não era unanimidade nem mesmo entre os cientistas naquele momento. Nesse sentido, reportagem da Revista Oeste intitulada: “Estudo da UFRGS garante que o isolamento social é ineficaz”, noticiando sobre estudo publicado na revista científica Scientific Reports em março de 2021, ou seja, antes mesmo do deferimento da primeira medida cautelar. https://revistaoeste.com/brasil/estudo-da-ufrgs-garante-que-o-isolamento-social-e-ineficaz Contudo, independentemente dos supostos méritos, não era incumbência da Corte imiscuir-se na aplicação dessa política, ainda mais utilizando-se de propriedades alheias sem qualquer indenização.
14. A medica cautelar foi referendada, por maioria, pelo Plenário do Tribunal, em Sessão Virtual Extraordinária de 6.12.2021 a 8.12.2021 (DJE n.º 25, divulgado em 09/02/2022).
15. § 4º Superado o prazo de suspensão a que se refere o caput deste artigo, o Poder Judiciário deverá realizar audiência de mediação entre as partes, com a participação do Ministério Público e da Defensoria Pública, nos processos de despejo, de remoção forçada e de reintegração de posse coletivos que estejam em tramitação e realizar inspeção judicial nas áreas em litígio.
16. Lei de Diretrizes Orçamentárias – no caso específico, a Lei n.º 13.898/2019.
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